quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

«Querido Gabriel»

de Halfdan W. Freihow,
Editado no nosso país pela Objectiva, tem encontrado um lugar nas estantes de milhares de pessoas no Mundo inteiro. Num testemunho comovente, mas nunca lamecha, o norueguês consegue no seu primeiro livro descrever sem subterfúgios o que é viver com um autista. No caso, o seu filho…
«´Oh, Papá, adoro o teu sonho!`
Eu não sei bem o que dizer quanto a isto e segue-se um longo silêncio.
Então tu perguntas:
´Papá, qual é exactamente o teu sonho?´
´Eh… ser bom e generoso e ajudar os outros´, replico eu vagamente, apanhado assim desprevenido. ´E qual é o teu sonho, Gabriel?´
Tu ficas a pensar durante muito tempo.
´Ser rico! Em dinehiro e em tesouros. Mas também no amor.´»

E amor é o que não falta em «Querido Gabriel», mas também medo, dor, companheirismo, desespero, abandono, discussões. No fundo, a Vida. Esta obra tem alcançado um sucesso significativo em todo o Mundo onde é editada, muito devido a sinceridade do seu testemunho. Numa carta dirigida ao seu filho autista, Halfdan W. Freihow escreve alguns factos que marcaram o convívio entre ambos, das dificuldades mas também dos momentos inesquecíveis que viveu, como aquando de uma corrida na escola, numa descrição realmente emotiva.

Evidentemente que o tema da carta poderia recair para um lado melodramático, mas Freihow consegue com distinção fugir ao óbvio e escrever de forma cativante os acontecimentos da sua vida, reflectindo sobre a relação com o filho, admitindo inclusive que por diversas vezes pensou em simplesmente… desistir. No entanto, nunca o fez…

«´Papá`, dizes tu.
´Sim`, digo eu.
Abraçamo-nos, agarramo-nos à única coisa que nos pode ajudar, o outro.»



«Querido Gabriel» é o seu primeiro livro. Foi complicado começar uma carreira literária abordando um tema tão pessoal?
Quando escrevi «Querido Gabriel» não pensei que estava a começar uma carreira de escritor. Foi um livro único, ditado pela minha necessidade de entender melhor o Gabriel. E quando o terminei acabou por ser, naturalmente, um livro muito mais íntimo do que se tivesse escrito um romance. Isso deixou-me ansioso em relação à recepção do livro, porque receava que os críticos poderiam ter a tentação de escrever mais sobre o meu filho do que propriamente sobre o meu livro.
Felizmente, a reacção da crítica ao meu filho Gabriel, tal como ele é descrito no livro, e ao livro em si, como uma obra literária, foi muito positiva. Naturalmente, a crítica positiva em relação à obra literária deu-me a confiança necessária para continuar a escrever, mas essencialmente para mim o prazer de escrever tanto Querido Gabriel como o meu segundo livro residiu no trabalho minucioso com as palavras.

Porque decidiu escrever este livro? Sentiu necessidade de deixar algo físico para o seu filho?
O que me levou a escrever o livro foi a necessidade de saber mais sobre a forma como a mente do Gabriel funciona, assim como a necessidade de compreender as minhas próprias reacções à forma de ser do meu filho. Não senti a necessidade de deixar um testemunho físico ao Gabriel, mas é certo que uma ambição importante por trás deste livro foi explicar ao Gabriel, através de uma carta dedicada a ele, a forma como eu via e reagia aos seus problemas.
Ele leu partes do livro, mas acabou por desistir, provavelmente porque o leu antes do tempo, talvez um ano antes do tempo. Porque o livro, apesar de ser uma carta de um pai ao seu filho, está escrito para adultos. Além disso, o Gabriel ouviu o audiolivro e a reacção dele tanto ao livro como ao audiolivro é muito difícil de decifrar. Os únicos comentários que o Gabriel fez ao texto são muito semelhantes aos comentários que a maioria das pessoas fizeram – porque ele leu as críticas nos jornais e viu as reportagens da televisão – e por isso não sei se ele faz comentários positivos ao livro apenas porque ouviu outras pessoas a fazê-los ou porque realmente é isso que ele sente. Um objectivo importante na escrita deste livro foi falar abertamente do problema do Gabriel. Uma das coisas que intrigou o Gabriel quando o livro foi publicado foi o facto de se imprimirem tantos exemplares, porque afinal de contas o livro era para ele, era uma carta para ele. Ainda assim, o livro deixou-o muito orgulhoso porque mais nenhuma criança que ele conhecia tinha um livro escrito sobre ela, e isso permitiu-lhe destacar-se de todas as outras crianças. Ele gosta de ser um vencedor, e o livro foi uma grande conquista, principalmente porque em muitos outros aspectos da vida o Gabriel não é um vencedor. Pela primeira vez, ele pode ser excepcional de uma forma positiva, e não de uma forma negativa, conforme estava habituado até então, por ser diferente dos outros. Além disso, no final de todo o processo, depois te doda a atenção pública, o livro permitiu ao Gabriel tomar mais consciência do seu problema, o que também é muito positivo. De certa forma, o livro e a reacção do público a ele foi uma confirmação do seu valor excepcional e também da sua diferença, de que ele passou a não se poder esconder.

Chegou a hesitar em escrever Querido Gabriel?
Sim, hesitei.
Por três razões, essencialmente: em primeiro lugar, porque não sabia se seria capaz de o escrever de forma a não ofender o Gabriel quando ele pudesse, finalmente, ler o livro; em segundo lugar, porque não sabia se seria capaz de o fazer sem explorar a minha família, os nossos vizinhos, e os colegas do Gabriel; por último, porque não sabia se seria capaz de escrever um livro com suficiente qualidade literária, visto que o tema era muito pessoal.

Escrever este livro foi de certo modo libertador?
Sim, foi libertador para mim porque todo o processo de escrita do livro me forçou a pensar sobre o modo como me relaciono com o Gabriel, de uma forma que a vida do dia a dia não me obrigava a fazer. Também foi libertador em termos práticos, porque o livro permitiu-nos falar abertamente sobre o problema do Gabriel e por essa razão muitos detalhes da nossa vida quotidiana se tornaram mais fáceis, porque deixámos de precisar de explicar diariamente aos outros o que se passava com o Gabriel. Embora tenhamos sempre sido muito abertos em relação ao problema do Gabriel, depois de o livro ser publicado toda a gente passou a saber e as coisas tornaram-se mais fáceis.
E penso, embora não esteja certo disso, que foi libertador para o Gabriel ver descrito em palavras o seu problema, sobre o qual ele tinha até então apenas uma percepção muito vaga.

A sua mulher levantou algum problema sobre a escolha do tema? Como foi o papel dela na criação do livro?
Não, a minha mulher não se opôs ao tema. Apoiou muito a ideia de eu escrever um livro sobre o Gabriel, não só porque foi muito generosa e me deixou perseguir a minha ambição de escrever o livro, mas também porque acreditou que eu seria capaz de o fazer de uma forma digna. Ela ajudou-me muito, tivemos longas conversas sobre o Gabriel. Ela tem uma memória muito melhor do que a minha e recordou-me de muitas situações de que eu já não me recordava bem.
Foi a primeira pessoa a ler o livro, e corrigiu detalhes de alguns acontecimentos, comentou a forma como eu interpretara erradamente algumas situações, e – em casos muito raros – pediu-me para não incluir algumas situações por serem demasiado pessoais. Depois da aprovação dela senti-me muito seguro, porque se a minha mulher tinha gostado, na verdade eu já não precisava de me preocupar muito com o que ia ser a reacção das outras pessoas.

A história da literatura regista vários casos de escritores que escrevem sobre as suas vidas pessoais: Santo Agostinho, Rousseau, Henry Miller, Kenzaburo Oe. Em que medida estes autores ou outros inspiraram a sua escrita?
Sinto-me muito lisonjeado por me comparar com escritores tão ilustres, mas lamento dizer que neste caso a única inspiração para o livro veio do meu filho, o Gabriel.

Certamente por ter um filho autista a sua concepção do Mundo foi alterada. Quais as mudanças mais significativas?
Sim, de facto, a minha concepção do mundo mudou.
Como qualquer outra pessoa que vive no Ocidente, eu orgulhava-me de ser uma pessoa tolerante e de mente aberta. Na relidade, a experiência de ter um filho como o Gabriel ajudou-me a perceber como essa tolerância e essa abertura ocidentais são superficiais, e ensinaram-me a perceber de que devem consistir realmente a tolerância e a abertura de espírito. Nesse sentido, ser pai do Gabriel ajudou-me a ser um ser humano melhor.

Ao longo dos anos deve ter pensado em desistir. Onde encontrou forças para continuar?
Sim, passei por vários momentos em que me apeteceu desistir. Mas isso não acontece a toda a gente? Encontrei forças para continuar na simples tomada de consciência de que não tinha alternativa, de que a única alternativa seria o suicídio, e a morte não é uma solução.

Para vencer este tipo de situações é fundamental ter uma família sólida, consistente?
Não, para vencer não é fundamental, nem sequer necessário, ter uma família sólida. Mas para ter uma vida feliz uma família sólida é sem dúvida uma mais-valia. Sem uma família, eu até poderia ter sucesso, mas sentir-me-ia provavelmente muito aborrecido.
Em contrapartida, para o Gabriel vencer na vida é absolutamente fundamental ter o apoio de uma família que o ama.

Uma das vivências emocionais mais comoventes relatadas por si no livro foi a cena da corrida. Deve ter sido realmente algo muito especial ter visto a compreensão dos amigos do Gabriel. As crianças estão preparadas para lidarem com essas situações?
Não, acho que em geral as crianças não estão preparadas para lidar com este tipo de situações, porque não foram ensinadas a lidar com elas. Mas por outro lado acredito que as crianças têm uma forma de empatia pura, impoluta, que oferecem a qualquer pessoa que sintam que está a sofrer. Esta empatia é indiferente a todas as barreiras criadas pelos adultos: sejam elas a raça, o sexo, ou uma deficiência de qualquer tipo. As crianças nascem com um grande nível de tolerância em relação à diferença, e um dos aspectos tristes do crescimento – de tornarmo-nos adultos - é que desaprendemos a ter esse tipo de tolerância.
Uma das coisas que mais me tocou ao testemunhar esta cena foi ver que a reacção das outras crianças foi puramente impulsiva, instintiva. Não foi nenhum adulto que lhes disse para agirem assim, foi puro instinto. E uma das coisas que eu podia ter escrito no livro, e não escrevi, é que nenhum dos adultos presentes teve a mesma reacção das crianças.

O autismo continua a ser uma doença desconhecida em termos mundiais?
Há aproximadamente quatro milhões de autistas no mundo, distribuídos mais ou menos homogeneamente por todos os países do mundo. Isso significa que todos os adultos deste mundo têm um familiar ou conhecem alguém que sofre de autismo. Por isso não se pode propriamente dizer que o autismo é uma condição desconhecida, mas por outro lado também é muito difícil perceber por que razão é que uma condição que atinge tantas pessoas não é objecto de mais investigação médica e científica.
Afinal de contas, o autismo foi diagnosticado pela primeira vez há mais de sessenta anos, em 1947.

Foi complicado escrever um livro que, a qualquer momento, poderia cair para o lado do melodrama?
Sim, foi um desafio evitar ser demasiado sentimental, porque se isso acontecesse estaria de certa forma a trair o valor do meu filho.

A sua relação com o seu filho transformou-se de alguma maneira depois de terminado o livro?
Não, continua a ser uma relação de amor entre um pai e um filho.
A única coisa que mudou foi a relação do mundo envolvente com o Gabriel e, espero eu, com outras pessoas que sofrem da mesma condição. Seria triste que um livro transformasse a relação de um pai com um filho. A única coisa que mudou foi o nível de abertura dos outros em relação aos problemas do Gabriel.

Como explica o sucesso do livro?
Há várias explicações possíveis.
Uma delas é que grande parte da literatura que existe sobre o autismo – pelo menos a que eu conheço - é muito técnica, e por isso inacessível à grande maioria dos pais de crianças autistas. Outra razão é que uma grande parte dos pais de crianças autistas vive com o sentimento de que estão muito sozinhos.
Sei, através de cartas e de reacções que recebi de vários países, que o livro ajudou esses pais a perceber que há outras pessoas que vivem o mesmo problema e que sentem as mesmas coisas que eles. De certa forma, o livro ajudou-os a sentirem-se menos isolados no seu sofrimento.
Uma terceira explicação possível é porque o livro não é sobre o autismo (a palavra nem sequer é mencionada no livro, a não ser no apêndice final), o que permitiu que o livro chegasse a um público de leitores que nem sequer se interessariam pelo tema. Por último, espero que o sucesso do livro também se explique por alguns leitores terem gostado dele por ser uma peça de boa literatura.

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